Quando ele me chamou de mãe

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Sou mãe de um menino de onze anos. Meu menino. Esperto, lindo e cheio de vida. Mas ele carrega nos ombros uma bagagem que não pertence a nenhuma criança. Uma bagagem que o tempo, a fome, a ausência e a solidão colocaram sobre ele. Ele sabe o que é sentir fome. Sabe o que é não ser cuidado. Sabe o que é andar sozinho por aí, indefeso, tendo apenas a si mesmo. Antes de chegar à minha vida pela adoção, ele viveu capítulos que eu daria tudo para reescrever. E talvez por isso, até hoje, tenha dificuldade de me chamar de “mãe”. Essa palavra parece morar numa prateleira alta demais, inalcançável para ele. Mas na madrugada de sábado para domingo, algo aconteceu. Ele estava com febre. Dormia inquieto, murmurando palavras que vinham de algum lugar entre sonho e delírio. Eu estava ali, ao lado dele, cuidando, sentindo sua respiração quente, atenta a cada movimento. E então… aconteceu. Ele me chamou de Mãe . Foi só uma vez. Baixinho. Quase como se fosse para si mesmo. E naquele instante, o ...

E se fosse o meu filho ali?

E se fosse meu filho?

Ontem de manhã, enquanto tomava meu café em um quiosque de terminal de ônibus, um rapaz se aproximou de mim. Devia ter uns 22 anos, talvez menos. Jovem, com o olhar cansado e o corpo magro de quem carrega muito mais do que devia. Ele me pediu algo para comer. Comprei um bolo, ele agradeceu com simplicidade e se afastou. A cena durou poucos minutos, mas dentro de mim, durou o dia inteiro.


Eu sempre fui uma pessoa atenta. Sempre observei o mundo com um olhar questionador, reflexivo. Mas depois que me tornei mãe, tudo passou a ter uma outra camada. Me tornei mais sensível. Mais aberta. Mais vulnerável, talvez. E ali, naquele terminal onde a vida corre sem pausa, fui tomada por uma pergunta que me paralisou por dentro: e se fosse o meu filho ali?


Sou mãe por adoção. Uma escolha consciente e transformadora. E mesmo sabendo que não sou a salvadora de ninguém, essa experiência me deu novos olhos. Penso com frequência sobre o caminho que meu filho teria seguido se não tivesse sido acolhido. Que chances ele teria? Quem o veria com ternura, com cuidado? Quem o chamaria de filho com orgulho?


Ver aquele rapaz me lembrou que toda pessoa já foi criança um dia. Que por trás de cada história invisível, há alguém que talvez nunca tenha sido amparado. Alguém que talvez tenha crescido sem ter a quem recorrer. E isso me atravessa. Porque poderia ser com qualquer um. Poderia ser com o meu filho.


A maternidade não me ensinou a ver o mundo. Eu já via. Mas ela me ensinou a sentir mais fundo. A não conseguir simplesmente virar o rosto. Me ensinou que empatia real dói — porque nos faz imaginar o outro como se fosse nosso. Nos coloca no lugar dele sem pedir licença.


Não, eu não acho que um pedaço de bolo muda o destino de alguém. Mas talvez, por alguns minutos, aquele rapaz tenha se sentido visto. E às vezes, ser visto é o primeiro passo para lembrar que se é alguém.


Escrevo isso porque preciso transformar essa dor em palavra. Porque sei que outras mulheres também vivem esses momentos de choque entre a pressa do cotidiano e a intensidade do que sentem. Ser mulher, ser mãe, ser tantas ao mesmo tempo — tudo isso nos deixa à flor da pele. Mas também nos deixa mais humanas.


Se você já se pegou pensando e se fosse o meu filho ali?, saiba que não está sozinha. Às vezes, não dá para mudar o mundo. Mas dá para não ignorá-lo. Dá para sentir, acolher e seguir — com mais compaixão, mais presença, mais verdade.


Que a gente continue enxergando. E, acima de tudo, sentindo.

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